terça-feira, 27 de abril de 2010

Mergulho no silêncio

Segunda-feira, horário de pico, terminal lotado. Como de costume, ele senta no mesmo banco, para esperar o mesmo ônibus. Entra-e-sai, pregações, conversa e barulho, muito barulho. Tudo seguia em acordo com a normalidade, quando ele sente uma mudança súbita.
De repente, como se todos ficassem consternados, o único som que rompe o silêncio é o barulhinho de tic-tac do vendedor. Nem um ônibus, nem uma palavra. Pensamentos somente, e cada um guardando o seu. Ele ficou tão impressionado que mal conseguiu levantar do lugar onde estava sentado; só queria observar, para não estragar aqueles minutos tão improváveis. Em meio à conturbada rotina e às muitas palavras inúteis gastas a todo hora, um diminuto tempo para organizar as ideias parecia um oásis.
E foi pouco mesmo. Logo depois, ele se deu conta de estar, novamente, imerso na loucura nossa de cada dia, com os ônibus fazendo seus barulhos característicos e as pessoas correndo. Provavelmente, para viver.
Ele, ainda no piloto automático, entrou no Varjota para ir pra casa. Surpreso, acordou com o barulho da cordinha puxada por si mesmo, ao notar que perdera a parada.

A um amigo que, muito mais que a inspiração do texto, me traz a inspiração cotidiana, ainda que ele nem saiba disso.

domingo, 18 de abril de 2010

É a conta menor que tiraste em vida



Mais um aniversário do massacre dos camponeses em Eldorado dos Carajás chega e pouca coisa muda. Apesar de terem ganhado um dia que deveria nos lembrar a injustiça ainda reinante, os trabalhadores sem terra continuam amargando as antipatias usuais das elites e dos meios de comunicação que as refletem, como se lutassem por uma causa imoral.
O MST é, frequentemente, reduzido a uma corja de radicais preocupados em danificar a terra alheia. Esquece-se, porém, de que muitos desses latifúndios causam um dano social muito maior, pois permanecem improdutivos, enquanto milhares de pessoas não têm, literalmente, onde caírem mortas. A grande mídia, por sua vez, exerce, magistralmente, o papel de conservadora do status quo, já que reforça, de todas as formas possíveis, os preconceitos e satanizações do movimento.
Li, uma vez, não tenho certeza se era verdade, que existe, no Amazonas, uma fazenda do tamanho do estado de Sergipe. Verídica ou não, a informação ilustra a gravidade da questão fundiária no Brasil. Em uma situação assim, reforma agrária só pode ser considerada obra do capeta mesmo. E, do jeito que a palavra de Deus tem sido usada por quem não devia, não é de surpreender que o coisa ruim cuide do Reino dos Céus.

Uma atualização: Nessa semana, aqui no Ceará, onde não imaginava que os conflitos por terra fossem tão intensos, um líder comunitário foi cruelmente assassinado, provavelmente, pelas causas que defendia. São muitos, quantos mais teremos que contar?

domingo, 11 de abril de 2010

Bento XVI e a Igreja Católica



Confesso que tive dúvidas para escolher sobre o que escrever nestes dias. Mais cedo, abri meu email e a definição veio: recebi um bom texto de Frei Betto, no qual ele comentava os últimos acontecimentos da Igreja. Vou apenas reproduzi-lo abaixo, pois o que eu poderia dizer, já foi colocado - e de uma forma bem mais competente -.

Vinde a eles as criancinhas? - Frei Betto*

As sucessivas denúncias de pedofilia e abuso sexual cometidos por sacerdotes e acobertados por bispos e cardeais envergonham a Igreja Católica e abalam a fé de inúmeros fiéis.
No caso da Irlanda, onde mais de 2 mil crianças entregues aos cuidados de internatos religiosos foram vítimas da prática criminosa de assédio sexual, o papa Bento XVI divulgou documento em que pede perdão em nome da Igreja, repudia como abominável o que ocorreu e exige indenização às vítimas.
Faltou ao pontífice determinar punições da Igreja aos culpados, ainda que tenha consentido em submetê-los às leis civis. O clamor das vítimas e de suas famílias exige que a Santa Sé aja com rigor: suspensão imediata do ministério sacerdotal, afastamento das atividades pastorais e sujeição às leis civis que punem tais práticas hediondas.
A crescente laicização da sociedade europeia reduz drasticamente o número de fiéis católicos e a freqüência à igreja. O catolicismo europeu, atrelado a uma espiritualidade moralista e a uma teologia acadêmica, afastado do mundo dos pobres e imbuído de um saudosismo ultramontano que o faz ignorar o Concilio Vaticano II, perde sempre mais o entusiasmo evangélico e a ousadia profética.
Dominado por movimentos fundamentalistas que cultivam a fé em Jesus, mas não a fé de Jesus, o catolicismo europeu cheira a heresia ao incensar a papolatria e encarar o mundo não mais como vale de lágrimas e sim como refém de um relativismo que corrói as noções de autoridade, pecado e culpa.
Ao olvidar a dimensão social do pecado, como a injustiça, a opressão, o latifúndio improdutivo ou a apologia da desigualdade, o catolicismo liberal centrou sua pregação na obsessão sexual. Como se Deus tivesse incorrido em erro ao tornar a sexualidade prazerosa. Como o Espírito Santo se vale de vias transversas para renovar a Igreja, tomara que as denúncias de pedofilia eclesiástica sirvam para pôr fim ao celibato obrigatório do clero diocesano, permitir a ordenação sacerdotal de homens e mulheres casados e ultrapassar o princípio doutrinário, ainda vigente, de que, no matrimônio, as relações sexuais são admissíveis apenas quando visam à procriação. Ora, tivesse Deus de acordo com tal princípio, não teria feito do gênero humano uma exceção na espécie animal e, portanto, destituiria o homem e a mulher da capacidade de amar e expressar o amor por meio de carícias e incutiria neles o cio próprio dos períodos procriatórios dos bichos, o que os faz se acasalar.
Jesus foi celibatário, mas é uma falácia deduzir que pretendeu impor sua opção aos apóstolos. Tanto que, segundo o evangelho de Marcos, curou a sogra de Pedro (1, 29-31). Ora, se tinha sogra, Pedro tinha mulher. E ainda foi escolhido como primeiro cabeça da Igreja.
Os evangelhos citam as mulheres que integravam o grupo de discípulos de Jesus: Suzana, Joana etc. (Lucas 8, 1-3). E deixam claro que a primeira pessoa a anunciar Jesus como Deus entre nós foi uma apóstola, a samaritana (João 4, 39).
Nos seminários e casas de formação do clero e de religiosos é preciso avaliar se o que se pretende é formar padres ou cristãos, uma casta sacerdotal ou evangelizadores, pessoas submissas ao figurino romano ou homens e mulheres dotados de profunda espiritualidade evangélica, afeitos à vida de oração e comprometidos com os direitos dos pobres.
No tempo de Jesus, as crianças eram desprezadas por sua ignorância e repudiadas pelos mestres espirituais. Jesus agiu na contramão dos preceitos vigentes ao permitir que as crianças dele se aproximassem e ao citá-las como exemplo de fidelidade a Deus. Porém, deixou claro que seria preferível amarrar uma pedra no pescoço e se atirar na água do que escandalizar uma delas (Marcos 9, 42). As sequelas psíquicas e espirituais daqueles que confiaram em sacerdotes tarados são indeléveis e de alto custo no tratamento terapêutico prolongado. As vítimas fazem muito bem ao exigir indenização. Resta à Igreja punir os culpados e cuidar para que tais aberrações não se repitam.
*Escritor e assessor de movimentos sociais.

Espera-se que a justiça seja feita - sem diferenciações - para ver se as Igrejas, de um modo geral, passam a enxergar as necessidades dos seus fiéis, já que muitos não têm nem o pão nosso de cada dia.

domingo, 4 de abril de 2010

Terra nem tão civilizada assim

Fui, na semana Santa, visitar uns tios que moram no Maranhão. Embora não tivesse ouvido falar bem do estado, gostei muito. Assim como as de Alcântara, as ruas do centro histórico de São Luiz transpiram história e beleza, o que serviu para aumentar minha indignação com o que foi feito do lugar.
Indignação de ver casarões, alguns com mais de 200 anos, abandonados. Tombados, mas sem conservação alguma. Azulejos arrancados, plantas tomando conta das casas e, nas habitadas, moradias miseráveis são cenas comuns quando se passeiam pelas ruas de calçamento do centro da capital. Em meio a esse mar de descaso, há um antigo convento bem arrumado. Explica-se logo: o prédio abriga o Memorial de José Sarney.
A impressão que se tem é a de estar em uma terra sem dono. Aliás, com um só: uma certa família. Precisa explicitar qual? É o velho costume de governar o bem público como se fosse privado, sacrificando, se preciso for, uma população, a história e o desenvolvimento de um estado, porque prestar esse desserviço em 40 anos é perfeitamente possível.
Por fim, há uma música em um supermercado maranhense que diz que o local é bom demais. Eu o modificaria afirmando que há tempo de torná-lo muito bom. Não eleger os Sarney - nem deixá-los tomar o poder a força, como fizeram no último pleito - já é um grande primeiro passo.